terça-feira, 1 de julho de 2014

UMA VIDA A FAZER RETRATOS DA VIDA. (II)

(Continuação-II)



Quando os pais faleceram só se alterou o número dos componentes do agregado familiar. Tudo o resto continuou imutável nos procedimentos, no ritmo e sequência dos atos, na mentalidade, no modo de vida. A tradição continuava a pautar a existência do fotógrafo popular, a evolução continuava a passar-lhe ao lado. Ele, indiferente, escutando, olhava sem a ver.



O aparecimento e popularização da máquina digital, fez definhar a fotografia em estúdio e, desde então, a atividade fotográfica do Zé Esteves passou a ser apenas ambulante e exercida quase em exclusivo em festas e romarias, para onde se deslocava, às vezes de véspera, acompanhado pela irmã. Utilizavam cada um a sua bicicleta, onde arrumavam criteriosamente tudo que lhes era necessário: a armação e o pano da barraca, o cenário de fundo, as máquinas fotográfica de foles fixa e móvel, o tripé, o balde para revelar as fotos e os adereços, as cordas e as molas onde pendurava os negativos para secarem. E o tacho e os comestíveis minguados para a refeição frugal ou uma colher de sopa a iludir o chamamento do corpo, antes de adormecer no chão da barraca. 
 A irmã a ajudar. Ele, à frente, ela, seguia-o atrás: quilómetros de chuva, extensos, frio e vento, sol inclemente, esforço, esquecimento, a vencer o tempo com a pressa de caracol sobre a fita preta do asfalto ou da estrada trepidante em paralelipípedos.

Tinha ponto certo sempre nos mesmos locais. Nunca o trocava e fazia questão de que outros não o ocupassem. Na festa grande do Senhor do Cruzeiro e das Necessidades, de Lanheses, foi solicitado pela Mesa, a partir da requalificação do adro e por razões de enquadramento dos coretos para as bandas e outros stands, para desocupar o sítio que vinha a utilizar desde sempre, indicando-lhe um novo lugar. Recusou a mudança e a alternativa proposta e, irritado pela contrariedade, suspendeu por alguns anos, mal remoendo a desfeita, a presença na festa principal da freguesia. Convencido a voltar, destinaram-lhe um novo espaço à entrada do recinto da festa que o demoveu a resistir por mais tempo à deslocalização forçada.

Quando a irmã, mais nova do que ele, faleceu a vida do Zé Esteves ficou ainda mais difícil. Mais só. Contudo, teimou em prosseguir no ofício, cada vez mais lento a pedalar a bicicleta, sempre solitário na estrada e na vida parecendo de tudo alheado como se dela já não fizesse parte.

A sua figura esguia e esquiva aos contatos pessoais  sugeria carências materiais que não eram de todo verdadeiras, mas existiam comparadas com os padrões mais correntes da época. Sugestionavam-se cenários de abandono social que não se ajustavam à realidade dos factos. Quem não sabe, inventa e muita fantasia se criou acerca da vida privada do Retratista. O José possuía o dom da independência sobranceira e o distanciamento de um felino domesticado em relação ao dono. Raros se apercebiam disso.


(Continua)

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