O antigo requalificado.
Já venceu mais de meio século (!) depois que deixou de ser o meu Lugar de residência e alguns mais (bastantes) em que foi o espaço natural preferido do meu crescimento em conjunto com o numeroso grupo de companheiros do Lugar, nivelados na idade e nas escassas opções de ocupação e entretenimento então ao dispor das crianças. Como bando de pardais em liberdade, se não fosse na escola passávamos mais tempo fora de casa do que dentro dela antes de chegar a hora de dormir. Agora, vou de visita à Corredoura e não posso deixar de notar que o Largo das Carvalheiras (foi o nome que aprendi dos antigos moradores e dos meus progenitores e não serão as placas da toponímia hodierna que poderão apagar a designação ancestral que nos foi legada) tendo possuído condições para aperaltar-se e dar-se ares de consolidada abastança, cresceu em fogos e alindou-se adquirindo um fisionomia renovada que não desilude a quem guarda na memória o cenário antigo. Ninguém se atreverá a negar o bom gosto das melhorias operadas nas corroídas casas originais, concluídas ou em curso. Nenhuma das moradias requalificadas foi modificada significativamente na arquitetura primitiva e, nem o facto de surgirem algumas novas construções e ligeiros alinhamentos nas delimitações do espaço deturpam significativamente a Corredoura que outrora conheci.
À direita o passado reabilitado à esquerda o novo acrescentado.
No que a Corredoura e as Carvalheiras agora mais me surpreende e acentua sentimentos de nostalgia, vem da sensação inquietante de não ver pessoas fora das habitações, designadamente crianças. Há automóveis estacionados o que pressupõe que ali continuam a morar pessoas. Não fosse o barulho dos motores doas viaturas que passam (apressadas) na estrada alfaltada (conhecia em macadame) e poder-se-ia dizer que reina nas Carvalheiras a paz e o silêncio de uma planície alentejana. E, então, reavivam-se em mim as algazarras da rapaziada a correr atrás de uma bola de trapos em desafios intermináveis, abrindo as unhas dos dedos dos pés descalços nas raízes das oliveiras e nas pedras do terreno irregular do espaço utilizado, nas zaragatas do jogo do pião ou a ouvir as discussões acaloradas dos mais velhos por uma diferença de pontos no jogo da malha ou chinquilho, nos jogos da cabra-cega ou do eixo, nas corridas de carrinhos de rodas de madeira feitos por nós próprios, nas corridas com arcos de aros de bicicleta ou o que restava de um pneu de bicicleta, mas, também, nas noites quentes de verão em cantorias improvisadas ou a ouvir as estórias contadas pelo sonhador Dionísio até ao vigésimo chamamento da voz materna a exigir a recolha a casa para cair na cama exautos no colchão de palha.
"À sombra de uma oliveira de que não se sabia e idade".
Como não ouvir (por dentro) a rabeca ou o bandolim do tio Zé Ferreiro no verão à hora de sesta junto à janela aberta virada à estrada, o chamamento de um freguês pela sua esposa tia Angelina para descer e vir abrir a mercearia para aviar um "mata-bicho" bem cedinho, o berreiro do Senisca, do Zé Careca, do Fiúza ou do Necas e do Zecas, a chamarem por mim e pelo Beija, no fundo da escada para seguirmos em grupo para a escola ou para na calma do estio "dar fundões" no regato da Silvareira perto do Trogal , a tia Seiça, do pátio em frente a chamar pelo Raul na nossa casa a acompanhar-nos na malga de caldo ou à lareira nos dias de inverno, ouvir o pregão da São das Sardinhas, pés descalços, com o cabaz sobre uma rodilha feita de trapo na cabeça e algo mais no estômago, o característico som do apito do amola tesouras e navalhas ou aplicador de agrafos nos pratos e alguidares de barro vermelho partidos e com a roda de amolar acionada com o pé, o mendigo pedinte a rezar pelas "alminhas que lá tem" rogando uma esmolinha, a tia Menina (do ramo familiar da minha mãe) do cabelo com caracóis e a tia Rita levando num braço a cestinha com os pirolitos de açúcar feitos por ela envoltos em papel de cores e, na outra, uma bengala para se arrimar porque uma perna não ajudava a outra a equilibrar-se, a Maria Rosa do Caleiro e a mana, solteironas, as amigas da tia Mariana, a mais idosa das quais ajudei a carregar até ao cemitério o caixão, o Joaquim Curjães, alfaiate, e o filho, Amado, com medo dos perus, o tio Neu do Soito de face sisuda e sobrancelhudo e beata ao canto da boca e a resmungar, o tio Formiga e o tio Neu da Rua, na venda com ar de meter respeito e pouco dado a graças, as maçãs do tio Sousa, o tio Garcias com voz grossa e intimidatória e o tio Zé do Vale, vizinho, alto e seco de carnes e mais um ror de figuras desaparecidas que a lei da vida implacável levou ou compelidos a rumar para diferentes destinos e andam ainda pelo mundo e a quem só muito esporadicamente volto a encontrar.
Gosto do que vejo quando estou nesta Corredoura. A "minha" só eu sinto e recordo como era.
Hoje é assim.
Nota de autor: Tio/Tia era o tratamento comum usado para com as pessoas de mais idade, com equivalência a senhor. Ainda se usa atualmente, mas cada vez menos.
OUTRAS FORMAS DE VER A CORREDOURA.
Ao cimo, o Largo das Carvalheiras. No início a casa que foi de Zé Leandro.
As antigas: Zé da Formiga, Neu do Soito, a de meus pais e (em fase de restauro) do tio Xico, pai do Raul
Velhas oliveiras alinhadas ao longo da quinta dos "Araújo".
Tia Brigída Curjães e Zé Laroto (ao fundo)
Só quem aqui viveu ou foi vizinho a reconhece.
Saída da Corredoura para Santo Antão. Depois da casa do tio Sousa, só o novo.
Na moradia de duas águas não se reconhece a antiga casa do tio Zé do Vale. Por aqui se chegava (também ) à fonte do Crelo.
Com toque de modernidade não é (muito) diferente daquela onde vivi.
Fotos: doLethes
Remígio Costa
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A sua reportagem paresse ter despertado o Arquiteto na óbra em foto!
ResponderEliminarSó tenho 20 anos. E gosto sempre de ouvir e ler algumas coisas que em tempos "antigos" se faziam aqui na minha freguesia.
ResponderEliminarCaro Senhor Remígio
ResponderEliminarDesde há algum tempo sou assíduo visitador do DOLETHES.
Cada reportagem que leio, cada notícia que por este "canal" me chega, cada foto em que me delicío, seja das margens do Lima, seja de uma árvore florida, seja de uma casa restaurada, ou até, com saudade, de uma ou um conterrâneo que acaba de partir, tudo me transporta , através da sua sensibilidade artística tão apurada, à terra que me viu nascer, e que , fruto da minha missão sacerdotal, tão poucas vezes visito, apesar de a distância da fronteira até Lanheses não ser assim tanta.
Através deste breve apontamento quero, mais do que comentar isto ou aquilo em concreto, quero agradecer-lhe o carinho, o amor e a arte que põe em tudo o que escreve e, através da objectiva da sua máquina fotográfica , nos vai dando o prazer de ver, rever ou recordar.
Se é tão agradável para um Lanhesense que está apenas a cinquenta quilómetros da sua terra, ver e ler tudo quanto quase diariamente vai colocando no DOLETHES, imagino quanto mais o será para aqueles que a vida levou para tão longe da sua querida Lanheses.
Bem haja, e que Deus lhe continue a dar saúde e disponibilidade para nos agraciar com tanto de bom e de belo que a nossa terra tem, e que o Senhor tão artisticamente nos proporciona saborear, mesmo de longe.
Votos de Páscoa Feliz para si, para toda a família e para a grande família lanhesense.
Um abraço amigo do Padre José Maria Pereira do Vale, Pároco de Valença, Verdoejo e Friestas.
Meu caro amigo e ilustre conterrâneo Padre José Maria.
EliminarSaber que segue o doLethes é para mim motivo de grande satisfação. As amáveis palavras que me dedica ajustando-se na perfeição aos objetivos e fins que procuro alcançar mas são, contudo, simpaticamente empoladas e, sendo assim, longe de as merecer. Agradeço a sua generosidade e procurarei retribuí-la esforçando-me para fazer cada vez mais e melhor.
Aqui lhe deixo um abraço de amizade com os votos de Santa Páscoa e o desejo de saúde que lhe permita o exercício do sagrado múnus do seu ministério em prol da comunidade de que é o Pastor.
Remígio.
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