(in revista Visão)
Vale e Azevedo para os Jerónimos, já! Loureiro para o Panteão, já! Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já! Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia. Para a Batalha. Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros de História nos enganaram. Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara
Agora sol na rua a fim de
me melhorar a disposição, me reconciliar com a vida. Passa uma senhora
de saco de compras: não estamos assim tão mal, ainda compramos coisas,
que injusto tanta queixa, tanto lamento. Isto é internacional, meu caro,
internacional e nós, estúpidos, culpamos logo os governos. Quem nos dá
este solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para nós, a
trabalharem, a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos.
Deixam de ser ministros e a sua vida um horror, suportado em estóico
silêncio. Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o
senhor Jorge Coelho, coitados. Não há um único que não esteja na franja
da miséria. Um único. Mais aqueles rapazes generosos, que, não sendo
ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho não estendem a mão à
caridade.
O senhor Rui Pedro Soares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade às vezes é hereditário, dúzias deles.
Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejam gratos, sejam
honestos, reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem. Uns
sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão. O senhor Vale e
Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor Carlos Cruz,
outro santo, bem o explicou em livros. E nós, por pura maldade, teimamos
em não entender. Claro que há povos ainda piores do que o nosso: os
islandeses, por exemplo, que se atrevem a meter os beneméritos em
tribunal. Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de
humanidade, de respeito.
Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá
decerto, com especial ternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o
estou a ver Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro Senta-te aqui ao meu
lado ó Duarte Lima Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo que é o mínimo
que se pode fazer por esses Padres Américos, pela nossa interminável
lista de bem-aventurados, banqueiros, coitadinhos, gestores que o céu
lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes de coração puro, espíritos
de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho. E com a bandeirinha
nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no coração. E
melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores, aproximando-nos
dos banquetes de bem-aventuranças da Eternidade. As empresas fecham, os
desempregados aumentam, os impostos crescem, penhoram casas, automóveis,
o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade
purificadora destas medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos
irrisórios, subsídios de cacaracá? Talvez. Mas passaremos sem
dificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por
amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A transcendência deste acto
dá-me vontade de ajoelhar à sua frente.
Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente, indigno de lhes desapertar as
correias dos sapatos. Vale e Azevedo para os Jerónimos, já! Loureiro
para o Panteão, já! Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já!
Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão
feia. Para a Batalha. Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o
Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros de História nos
enganaram.
Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara. Haja
sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito. Estátuas
equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha de
perseguir o senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca vergonha
contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão presos
por, como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o senhor Carlos
Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis. Admitam-no. E
voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde o
obrigaram, por maldade e inveja, a sair. Quero o senhor Mexia no
Terreiro do Paço, no lugar de D. José que, aliás, era um pateta. Quero
outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse
tirano.
Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos.
Acabem com as manifestações, as greves, os protestos, por favor
deixem de pecar. Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem,
mas vê-de. E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso.
Agradeçam este solzinho.
Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar.
Abaixo o Bem-Estar. Vocês falam em crise mas as actrizes das
telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a crise,
então? Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que uns
violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos
oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da
grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres em
tenebrosas máscaras de Carnaval. Para isso já há dinheiro, não é? E
vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes, cortejos, berros.
Proíbam-se os lamentos injustos. Não se vendem livros? Mentira. O
senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender, o nível da nossa
cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa. Que queremos?
Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros a
tomarem conta disto.
Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar? O resto são
coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não haver com
que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram
criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os
processos importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente, de
prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e
beijando-nos um aos outros com os bifes das bocas seremos, como é nossa
obrigação, felizes.
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