Jorge Fiel é cronista do Jornal de Notícias (JN) que leio com muito gosto e a peça que hoje subscreve trata da obtenção do "canudo" dos cursos universitários, um tema que está na "ordem do dia" e vem sendo tratado neste blogue. Para aqueles que não possam aceder à leitura no conceituado diário, aqui fica a reprodução integral do texto, com a devida vénia.
"A minha mãe merece um canudo
Quando era miúdo, eu era uma peste. Logo nos primeiros dias, na Maternidade Júlio Dinis, berrava tanto e portava-me tão mal que enfermeiras e auxiliares diziam que eu era pior que o Jaburu, o que suponho era uma alusão ao temperamento irascível do homónimo avançado do F.C. Porto.
Cresci a ouvir que, às vezes, eu era pior que o tio Nica, que não
conheci mas era o padrão de excelência nos domínios da maldade para a
minha família do lado materno.
Com a paciência de quem, para suavizar os finais do mês lá em casa, confecionava as asas que os anjos usavam nas procissões (colando e cosendo penas brancas em moldes de papelão), a minha mãe foi-me aturando as birras e arredondando as arestas do meu feitio.
Em 1975, com 19 anos, preparava--me para deixar os estudos, após um ano de experiência fracassada no ISPA, em Lisboa, quando a minha mãe me convenceu a matricular-me em História (UP), com o argumento de que o canudo me iria ser sempre muito útil.
Foi por mérito dela que a intensa participação cívica que mantive, antes e depois do restabelecimento da democracia, não se revelou incompatível com as obrigações académicas, como sucedeu, por exemplo, com Miguel Relvas.
O meu curso teve um desfecho curioso. Nas férias grandes a seguir a ter passado para o 5.0 ano, fui surpreendido pela notícia de que a sua duração tinha minguado para quatro anos. Ainda me interroguei sobre se já estaria licenciado. Mas não. Foi providenciada uma época intercalar em janeiro para os do meu ano poderem acabar o curso sem serem apanhados pelos do ano anterior.
Não pensem que estou aborrecido por ter sido obrigado a gastar quatro anos e meio - e a fazer exames a todas as disciplinas - para ter o canudo, enquanto o Miguel Relvas resolveu o assunto num ano, na Lusófona (grande Universidade!), e o José Sócrates num par deles, na Independente (outra grandíssima Universidade).
Eu compreendo. O Relvas, além de já ter sido secretário de Estado da Administração Interna, já frequentara três cursos (Direito, Relações Internacionais e História) e cometera a proeza de completar com dez valores um cadeirão (Ciência Política e Direito Constitucional). E não nos esqueçamos que, apesar de já ter sido ministro do Ambiente, Sócrates ainda foi obrigado a marrar para o exame de Inglês Técnico.
Eu compreendo o Miguel e o Zé, apanhados sem curso a subirem na política, com toda a gente a tratá-los por doutores e engenheiros - e eles, com medo de passarem por impostores, resolverem conceder-se uma nova oportunidade e arranjarem à pressa um canudo.
Compreendo o charme de ser doutor - é por isso que trato todos os meus colegas por doutores. Só acho que a paciência com que a minha mãe me aturou e a sabedoria com que fez de mim um homem justificam plenamente que lhe atribuam, a titulo póstumo, uma licenciatura, em Ciências Pedagógico-Educativas e Teoria do Comportamento. Vou já tratar de descobrir se tenho um amigo na Lusófona, Independente ou Livre."
Com a paciência de quem, para suavizar os finais do mês lá em casa, confecionava as asas que os anjos usavam nas procissões (colando e cosendo penas brancas em moldes de papelão), a minha mãe foi-me aturando as birras e arredondando as arestas do meu feitio.
Em 1975, com 19 anos, preparava--me para deixar os estudos, após um ano de experiência fracassada no ISPA, em Lisboa, quando a minha mãe me convenceu a matricular-me em História (UP), com o argumento de que o canudo me iria ser sempre muito útil.
Foi por mérito dela que a intensa participação cívica que mantive, antes e depois do restabelecimento da democracia, não se revelou incompatível com as obrigações académicas, como sucedeu, por exemplo, com Miguel Relvas.
O meu curso teve um desfecho curioso. Nas férias grandes a seguir a ter passado para o 5.0 ano, fui surpreendido pela notícia de que a sua duração tinha minguado para quatro anos. Ainda me interroguei sobre se já estaria licenciado. Mas não. Foi providenciada uma época intercalar em janeiro para os do meu ano poderem acabar o curso sem serem apanhados pelos do ano anterior.
Não pensem que estou aborrecido por ter sido obrigado a gastar quatro anos e meio - e a fazer exames a todas as disciplinas - para ter o canudo, enquanto o Miguel Relvas resolveu o assunto num ano, na Lusófona (grande Universidade!), e o José Sócrates num par deles, na Independente (outra grandíssima Universidade).
Eu compreendo. O Relvas, além de já ter sido secretário de Estado da Administração Interna, já frequentara três cursos (Direito, Relações Internacionais e História) e cometera a proeza de completar com dez valores um cadeirão (Ciência Política e Direito Constitucional). E não nos esqueçamos que, apesar de já ter sido ministro do Ambiente, Sócrates ainda foi obrigado a marrar para o exame de Inglês Técnico.
Eu compreendo o Miguel e o Zé, apanhados sem curso a subirem na política, com toda a gente a tratá-los por doutores e engenheiros - e eles, com medo de passarem por impostores, resolverem conceder-se uma nova oportunidade e arranjarem à pressa um canudo.
Compreendo o charme de ser doutor - é por isso que trato todos os meus colegas por doutores. Só acho que a paciência com que a minha mãe me aturou e a sabedoria com que fez de mim um homem justificam plenamente que lhe atribuam, a titulo póstumo, uma licenciatura, em Ciências Pedagógico-Educativas e Teoria do Comportamento. Vou já tratar de descobrir se tenho um amigo na Lusófona, Independente ou Livre."
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