sábado, 26 de outubro de 2019

RIO ACIMA, RIO ABAIXO



-Quim, onde nasceste?

Era verdade. O Quim, o quinto filho de uma prole de sete do Ti Augusto e da Tia Linda, nascera mesmo dentro do barco água-arriba acostado sob a ponte Eiffel em Viana do Castelo, debaixo da vela grande, com o luar de agosto a inundar as águas tépidas e deslizantes do rio do esquecimento; e até não poderia ter sido doutro jeito sendo certo que, naquela época, o Ti Gusto e a Tia Linda nele viviam a maior parte do tempo ocupados na intensa faina diária de barqueiro.

Rio acima, rio abaixo, dias e noites deslizando ao ritmo repousante do correr das águas e dos ventos das marés, lá calhara a hora à mãe do Quim, sem tempo nem lugar sequer para demandar os experientes préstimos da Tia Olívia Vale que já aparara meio mundo da freguesia e a ajudara nos partos anteriores.

Sabedores do insólito evento, os companheiros de brincadeira do Quim, provocavam-no amiúde.

-Quim, onde nasceste?
-Ora, no barco, debaixo do traquete, respondia num fôlego para que o deixassem em paz.

Ficava, depois, por momentos, como que alheado do desfrute da resposta que dera,  os  olhos grandes e brilhantes, estáticos e ausentes, branco pérola a contrastar com  o castanho cenoura da pela sardenta do rosto angular, o cabelo ruivo resquício de avoengos suevos cortado à escovinha com a tesoura, e uma serra de dentes a sobressair numa boca sem medida.


-Quim, onde nasceste?


...

O Ti Gusto era uma figura singular. Homem de caráter moldado pelo rio manso e leal, amigo cúmplice de vivências sem fim, confidente de estórias vividas e sonhadas, o barqueiro, como por muitos era tratado, vivia todo o tempo no rio e do rio.

Ao longo de anos e anos -tantos quantos lho permitiu o maldito reumático que já no ocaso da vida o arrimara a uma bicicleta, que conduzia pela mão, para se deslocar, e, depois, por ele convertida num carrinho com três rodas a que adaptara os pedais e movimentava pela força dos braços quando o mal o impediu de usar as pernas, o Ti Gusto e a sua prole viviam mais tempo sobre a água do que na casinha branca que se erguia no alto do morro perto do rio com vista até à barra.

- Ó Ti Gusto, vai chover amanhã?

Olhava por momentos o firmamento para lá do monte de S. Silvestre, movia  com a ponta de língua de um lado para o outro a metade do kentuky sem morrão, e respondia com voz pausada:

     -Não, rapaz, não há nuvens na barra.



Descendo ao sabor da maré no seu barco água-arriba de vela quadrangular redonda, habilmente remendada pela mulher com lonas de diferentes cores, o Ti Gusto chegava a Viana levando para aí o milho, as batatas, o feijão, as cebolas, os legumes, o vinho, aves de capoeira, e, também, o linho, a lenha, a carqueja, o carvão, este feito nos montes com os galhos verdes dos restos dos pinheiros empilhados em fornos de forma abaulada calafetados com terra amassada e com uma pequena abertura na base semelhante à dos fornos domésticos de cozer o pão de milho para atear o fogo que ardia durante alguns dias até ficar em carvão; outras vezes, era a madeira em toros acorrentados à ré formando jangadas extensas destinados a exportação pelo empresário vianense João Alves Cerqueira, a olaria, a telha e o tijolo burro produzido nas fábricas de cerâmica ao tempo existentes em Lanheses.
No barco água-arriba seguiam ainda pessoas que se deslocavam à cidade para tratar de assuntos na Fazenda Pública, registo de bens na Conservatória, e, frequentemente, mais do que o bom censo recomendaria, para dirimirem na justiça querelas quase sempre ruinosas para os contumazes beligerantes.


Quinzenalmente, virava montante subindo o rio com a grande embarcação ajoujada ao peso de bens de consumo, gado bovino e ovino, aves de capoeira e com passageiros feirantes, saudados aqui e além pelos ranchos de lavradeiras ocupados no amanho das terras úberes das margens do Lima; chegava ao areal da feira em Ponte de Lima aproveitando a brisa das marés ou a força braçal, sua e da mulher, movendo-se num vai-vem cadenciado da popa é ré, da ré à popa, de um lado e do outro do barco, com a vara comprida espetada no ombro calejado de anos de labuta, o olhar perscrutando os bancos de areia fina para os evitar; o regresso, ao cair da tarde, com gentes alegres que cantavam e riam, às vezes um casal noivo que havia comprado na feira a primeira mobília e apetrechos de cozinha, entre dornas para guardar o vinho estavam cestos de vime, louças utilitárias de barro, sementes variadas, hortaliças, um porco para a matança ou para cevar e abater para festança na quadra natalícia, uma vitela ou junta de bois, um par de tamancos ou uma caroça de junco para os dias de chuva, mel silvestre, uma peça de roupa ou lençóis de linho, um vestido ou fato domingueiros.


....
Era, agora, o tempo das lampreias a regressarem às mil nos meses frios do inverno lá dos confins do Mar dos Sargaços. Ao rio afluíam outros pescadores além do Ti Gusto, das duas margens: eram o Zé Badalheiro e os filhos Fredo e João (o "Barrabás"), o Coutinho, da Passagem, na margem esquerda, o Ti Carolino, o Ti Rochinha, o Zé do Rego com a sua perna canhota atrofiada, uma figura típica obsecado pelo rio e pela pesca que, no decorrer de uma cheia de alagar todo o vale do rio, estivera dois dias e duas noites dentro dá água  agarrado a um cepo de salgueiro, rezando e gritando por socorro (valeu-lhe um filho do Ti Gusto, o João, que por acaso o descobriu e livrou de morte certa), mas o Ti Gusto era diferente de todos os que conheci.

     Nas mudanças sazonais das luas chegavam em cardumes imensos as sinuosas e esquiva angulas -também conhecidas por meixões- e enchiam-se peneiras e baldes delas sendo depois vendidos pela Tia Linda a dois escudos e cinquenta centavos por litro.

      O salmão, o sável, as trutas, os barbos, as taínhas, as solhas, o camarão de água doce, o mexilhão, as enguias e outras espécies menos procuradas, bastavam para a sobrevivência do barqueiro e da família.



     O rio já não é o mesmo, agora. Já não pertence, como no passado, aos barqueiros tradicionais e aos água-arriba de vela quadrangular redonda desaparecidos da navegação no início da segunda metade do século XX. Está violentado na sua natureza idílica e romântica, algo contaminado com os malditos detritos plásticos presos nas raízes dos amieiros e salgueiros das margens, com o leito descarnado e armadilhado em poços onde o caudal redopia nas enchentes da chuva sazonal, aqui e ali açaimado por taludes e represas artificiais; outrora tão pacífico, desejado por jovens e adultos, de água cristalina, tão dolente e romântico, e bom, tão lindo e encantador, tem agora a alma salgada das marés, as margens sem areais dourados onde o linho secava e as redes de pesca repousavam, limitado nas margens impostas que já não
conhece e jamais poderá fertilizar.

 - Quim, onde nasceste?

...

(Escrito em janeiro de 1994, por Remígio Costa)  


Fotos: doLethes
Texto: Remígio Costa 

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