SORTE NA VIDA, O QUE É?
O que é ter sorte na vida, sendo ela curta
ou longa, boa ou má, quem a procura e alcança num ato incalculado de quem é
feliz e vive a vida ao jeito louvável que o acaso dá, ou porque uma graça
Divina o salvou de uma tragédia de alcance extremamente doloroso e impossível
de conter?
No decorrer de minha já longa vida
coleciono um número de casos em que a sorte andou a meu lado, desde criança até
ao dia de hoje.
Era menino de berço na casa do Lugar de
Santo Antão onde a família naquele tempo residia, e, acordando de um sono
longo, saí do berço e gatinhei sozinho até à lareira (a moça que me cuidava
estava ao portal com o namorado) onde, por hábito, sabia haver leite que
diariamente me era dado beber. Cheguei à lareira, ergui a mão e puxei a
chaleira derramando o conteúdo ainda escaldante no cotovelo do braço direito,
causando uma zona da queimadura cuja marca ainda perdura. Foi sorte: ficou a
pele no braço ligeiramente estriada para sempre mas só é visível no verão com
camisa de manga curta; tivesse sido na cara (uma prima minha teve essa má
fortuna) e a desgraça seria bem pior.
Já
morava no Lugar da Corredoura, era ainda criança mas arriscava já situações com
perigo. Na casa do vizinho mudava-se o telhado de um pequeno coberto. Debaixo estava
guardado um carro de bois e, por meio dele, trepei agarrado à travessa onde
assentavam telhas: a madeira quebrou, caí em cima da roda do carro, parti o
braço esquerdo. Foi num curandeiro de São Salvador da Torre onde fui tratado e
a mazela não deixou marca visível.
E, porque estou a falar de quedas, dei
outra dois ou três anos depois. Era tempo de vindima, preparei um cutelo,
afiei-o e fui testá-lo na lapada que existia no quintal em frente à casa. Subi ao
muro, estiquei a mão para um cacho, desequilibrei-me e…estatelei-me no chão.
Clavícula quebrada. Podia ter sido pior. Sorte, a minha.
Pelos catorze anos, mais coisa menos bocado,
arranjei uma espingarda. Um cano, não recordo onde, talvez no ferreiro Pereira
no Lugar do Campelo, sem bem me lembro, e uma corunha num carpinteiro que
andava lá por casa a trabalhar. Pólvora e chumbo no cano, taxa no “ouvido” do
cano, gatilho no dedo, aciono, track,
nada! Repito o gesto, bola! Usei um arame para agitar a pólvora no buraquinho
e…pum! Aí vai pólvora em brasa. A mim, saltou matéria incandescente para os
olhos, ao meu irmão Beija, ao meu
lado, zuniu o chumbo mas não lhe acertou. A sorte foi também minha porque o Dr.
Jorge Machado tratou-me o olho esquerdo atingido pela pólvora colocando-me um
penso em algodão que sustentei cerca de um mês; o irmão Benjamim saiu ileso
(sorte dupla a minha!) do tiro traidor. Voltei a pegar numa espingarda, já
adulto, na carreira de tiro em Aver-o-Mar, na Póvoa de Varzim, na instrução
obrigatória no serviço militar. Nem no alvo meti uma bala.
Não me quero alargar no caso de ter caído
de uma figueira na casa do meu avô paterno, donde saí com o braço direito
deslocado na rótula do cotovelo e a mão voltada ao contrário (reposta na
posição normal após a queda pelo marido da minha madrinha Olívia, irmã do meu
pai), porque o caso está já descrito num post
do meu blogue doLETHES. Contudo, as sequelas causadas no braço direito ainda
perduram sem contudo limitarem a minha capacidade de ação no desempenho da função
administrativa ou outra atividade quotidiana.
Mas, a
seguir…
Vinha
eu ao volante do Seat comercial a
descer na estrada em zigue-zague de
Meixedo até Lanheses; numa das primeiras curvas do percurso subia, no sentido
inverso, uma viatura automóvel que viria a saber tratar-se de um amigo meu conterrâneo.
Quis levar o meu carro o mais possível para a direita, mas, talvez porque o gesto
no volante ter sido quiçá demasiado brusco, o Seat deambulou com a traseira, ficou sem controlo, derivou para a
valeta, bateu com o motor numa entrada em pedra alguns metros à frente ficando
ao contrário de pneus no ar; de cabeça para baixo, tirei o cinto, saí incólume
pela janela. A viatura seguiu para a sucata.
Não vinha no carro sozinho, trazia, sem
dar conta, a sorte no assento do pendura.
Vinha do Porto pelas quatro horas numa tarde
de calor sufocante, no meu Ford Escort de
poucos quilómetros. Cem metros (estimados) á minha frente, seguia um carro da
polícia de trânsito. Abrandei a velocidade para não o ultrapassar, e fui
mantendo o ritmo lento e a distância entre os carros. Na subida do Monte da
Ola, Vila Nova de Chafé, acordei ao som metálico de uma tampa da roda da
frente, lado direito: parei, tinha a roda raspado na guia do passeio, saí do
carro e guardei o disco solto. Pelo canto do olho notei que um polícia, fora da
viatura, estava a observar a minha atitude, mas, perante a aparente calma e o meu
recomeço da viagem, retomaram também eles a marcha dispensando a intervenção.
Sorte grande não foi, mas livrar-me de multa deixou-me a sorrir.
Vou, ainda, evocar um caso que considero
de muita sorte apesar da gravidade das consequências que dos fatos poderiam ter
resultado em tragédia. Era já casado recente, estava no Largo da Feira com o
sol a ocidente a chegar ao Monte de São Silvestre, quanto o saudoso amigo
alfaiate Joaquim Nunes, com quem conversava, me incitou a acompanhá-lo a São
Salvador da Torre, para ver a situação de um automóvel acidentado que, numa
curva acentuada, tinha entrado numa ribanceira mas sem mazelas de vulto para o
condutor nosso concidadão. Na penumbra da noite próxima, fui descendo o valado
agarrado aos arbustos pensando estar perto de um muro de suporte que não tencionava
saltar. Porém, não havia qualquer tapume, meti o pé em falso, caí de uma altura
de cerca de dois metros batendo de costas sobre um cepo de salgueiro.
Traumatizado, sem tino para avaliar o estado em que me encontrava, foi o Joaquim
que me trouxe-me e entregou ao Doutor Jorge Machado, que me acolheu e manteve
toda a noite em permanente observação no seu gabinete médico. Devo-lhe muito.
Levaram-me de manhã para a minha casa onde permaneci na cama duas semanas, em
recuperação. Anos depois, numa consulta hospitalar de rotina, foi-me mostrada
uma radiografia onde duas das últimas vértebras estavam separadas da coluna
cerca de um centímetro cada. A sorte, na desgraça, esteve do meu lado outra vez
porque não tive que recorrer a muletas ou carrinho de rodas, de enfrentar a
imobilidade total para sempre caso tivesse fraturado a coluna vertebral.
Mais...
Nada nesta vida superaria a sorte que me contemplou num episódio a rondar tragédia familiar.
Por último, a sorte maior do meu
percurso de vida do que poderia ter sido uma tragédia para mim e para os meus
familiares, cuja divulgação agora levo a público pela primeira vez.
Era domingo no mês de outubro e, ao sol
radioso da manhã, eu, a minha mulher, os nossos filhos, um menino de cinco anos
e a bebé recém-nascida (meados de setembro), fomos para a casa dos meus sogros,
distanciada da nossa cerca de trezentos metros, para um almoço familiar. Chegados,
a menina foi posta num berço de vime num dos quartos do primeiro andar, cujo
soalho era de madeira, situado por cima da cozinha no rés-do-chão; aqui,
pendurada na parede pela correia estava uma espingarda caçadeira com o cano virado para
cima, que o meu sogro usava de quando em vez em tempo de caça. Sem desprender a
arma, toquei ligeiramente no gatilho porque a avaliei sem carga, tendo ficado
estarrecido com o estrondo causado pelo tiro que a arma expeliu e pelos efeitos
malévolos que pudesse ter causado desgraça no andar de cima onde estava o berço
e nele a nossa filha. Subimos, eu e a mãe da bebé, a escada interior como se
tivesse um único degrau, entrando já sem folgo no quarto em estado de total
exaustão. A menina continuava no sono, serena, não acordou com o estrondo, o
berço não mostrava indícios de ter sido atingido. Contudo, numa observação mais
calma e atenta, deu-se conta de um buraco no soalho alinhado na vertical com a
frente do berço, a milímetros da cabeça da criança que nele dormia!
Meu Deus e Senhor das Necessidades,
que alívio!!
O acidente relatado aconteceu no ano
de mil novecentos e setenta, há cinquenta e cinco anos! Está indelével no meu
pensamento e guardo-o na memória como o facto mais emocionante vivido em todo o
percurso da minha já longa vida.
Pergunto-me, frequentemente, o que teria
sido a minha existência na Terra carregado com as dores pesarosas de uma
fatalidade inapagável e sem remédio, mesmo que inadvertidamente acontecida, que
nada neste Mundo a apagaria da mente de um ser humano consciente do valor
incalculável da vida.
Não me ocorre suprema avaliação da “sorte da vida” melhor justificada da
que está expressa nos factos constantes do texto.
Remígio Costa
20.06.025