A RODA QUEBRADA
(Conto)
Naquela
idade, possuir uma roda era tudo o que uma criança desejaria ter. Um rabo de
vassoura sem préstimo, uma roda cortada de um tronco de pinheiro segura por um
prego na ponta mais grossa do cabo, um segmento de madeira pregado à altura dos
cotovelos a servir de guiador, e, ei-lo de olhos brilhantes e sorriso de sol de
Verão a correr pela estrada do Paraíso.
Alguns,
por serem mais crescidos ou copiarem os ofícios dos pais, ou mesmo ajudados por
estes, logravam possuir rodas mais bonitas e melhor apetrechadas tal qual como
acontece hoje em dia com os colecionadores de automóveis. O pau redondo e liso
de arestas, a roda cortada na perfeição pela linha traçada na tábua aplainada e
ajustada na ranhura aberta no topo a rolar num eixo de madeira ou metal e o
volante na medida certa fixo com um prego ou parafuso no encaixe aberto para o
efeito no pau maior da roda.
Às
vezes, os mais criativos e inovadores, instalavam no modelo um travão tão
vistoso quanto ingénuo, mas de efeito garantido no grupo dos outros meninos que
possuíam o brinquedo artesanal sem aquele extra. O engenho era simples: entre a
roda e a base da ranhura onde estava colocada
era introduzido um pequeno bocado
de madeira ao jeito de cunha atravessado, mais ou menos a meio, por um eixo (um prego também servia) ao qual
era aplicado no topo um fio de arame ou corda que se ligava a uma alavanca
móvel presa por baixo e junto à barra do volante. Para acionar o freio bastava
puxar para cima a alavanca e provocar o atrito do travão sobre a roda.
O
carpinteiro tratado para reparar o soalho da cozinha da casa de habitação, um
idoso de reconhecida arte no ofício, trabalhava no banco de carpinteiro
improvisado instalado no coberto dos arrumos da lavoura no aparelhamento das
tábuas para a reparação e o jovem filho do dono da casa não perdia nenhum dos
seus gestos, atento na destreza dos suas mãos a tirar fitas das tábuas com a plaina e
na firmeza e rapidez do corte da serra à medida do necessário.
-Faça-me uma roda, pediu ao artista
com sabor de maçã doce na voz.
-Faço,
se o teu pai autorizar.
Uma
roda construída por um carpinteiro de ofício, para mais um artista, valia bem a
tentativa junto do progenitor para colher o aval de que precisava. De resto,
sendo ele, não o mais velho dos seus irmãos, mas o primogénito da prole de oito
a que pertencia, tinha aprendido a tirar partido da condescendência paternal
para obter aquilo que desejava.
Acompanhou, gesto a gesto, peça a peça, todo o processo da construção do
brinquedo: a escolha e o aplainamento do varão principal, o traçado circular
feito pelo compasso da roda e o corte rigoroso da lâmina da serra mais
estreita, o furinho no centro perfurado pela broca do berbequim, a abertura
na parte mais larga da vara para a instalação da roda, os furos para a
colocação do eixo em madeira seca de oliveira, mais rija, a colocação do
segmento de madeira no encaixe da haste principal aberto previamente a formão
do que seria o volante, a precisão e simplicidade dos gestos do artesão.
Num
ápice, entrou na estrada de macadame que passava no lugar onde morava e
costumava brincar, com o engenho assente no ombro direito, as mãos agarradas ao
volante e o peito ancho de felicidade. Acima e abaixo, aos círculos ou zigue-zagues,
movendo a cabeça e inclinando o tronco no sentido do movimento, brincou com o
sonho o tempo que não mediu embrenhado no mundo que só existe na fantasia das
crianças felizes.
A
bicicleta montada pelo padeiro que ali passava na estrada com o saco do pão a
distribuir pelos fregueses, ao domicílio, não foi desviada a tempo pelo
ciclista que a montava de forma a evitar o choque contra o descuidado dono da
roda que ali andava a experimentar o brinquedo acabado de estrear. Não ficou
molestado fisicamente, mas o coração pareceu-lhe ter parado quando se apercebeu
que a roda tinha sido quebrada em duas metades!
Com um
pedaço da roda nova em cada mão, a criança ficou estática no meio da estrada a
ver o padeiro montar de novo na bicicleta e seguir o seu destino, não sem que
antes ele tivesse voltado a cabeça para trás e soltasse uma gargalhada que lhe
soou aos ouvidos como um trovão rebombando numa noite tempestuosa.
(CONTINUA)
Remígio Costa, 2013/Fevº.
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