quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

ESTÓRIAS DE ENCONTROS DA VIDA REAL (II)

(Continuação)



A RODA QUEBRADA-II
(CONTO)


                Alguns anos passaram sobre o episódio sem que a imagem do atropelante a escarnecer da desventura da infância se desvanecesse da memória, fazendo germinar no seu íntimo um propósito de desforço que aumentava à medida que encurtava a chegada da idade adulta. Desse as voltas que tivesse que dar, a bicicleta que o padeiro montava no momento do embate que lhe roubara o brinquedo tão estimado haveria de ser a contrapartida do dolo sofrido.

                Trabalhou duro como carpinteiro em França, para onde emigrou clandestinamente ainda não tinha cumprido o serviço militar e, só regressou à terra depois de ter obtido a regularização da situação naquele país e ter amealhado, à custa de muito trabalho e competência e de uma vida sem desperdícios, um pé-de-meia que lhe possibilitou a construção de uma moradia no seu rincão nativo e a compra, com dinheiro na mão, de automóvel novo de boa referência em que se deslocou no regresso à terra onde vivera na juventude, para a primeira visita desde que abalara da aldeia onde nascera.

                Mal teve tempo de desfazer a mala e já estava a ver passar o cortejo das mordomas nos seus trajes regionais, uns de cores vermelha ou azul e blusa branca com bordados das mesmas cores e lenços atados ao alto pelas pontas a cobrir a cabeça, outras onde o preto predominava e fazia realçar ainda mais os brincos à rainha trabalhados à mão e as voltas dos cordões de ouro pendurados ao pescoço das moças da aldeia, algumas suas companheiras de juventude antes de ter partido para França.

                Uma a uma iam as moças donairosas desfilando à sua frente e, sempre que o rosto de uma delas lhe era mais familiar, sorria para a visada que, reconhecendo-o, o agraciava com um olhar encorajador que ele entendia como uma promessa de bom entendimento futuro. Conteve, numa emoção estranha que o perturbou, a respiração quando, na fila do outro lado da estrada que o cortejo seguia, uma donzela muito atraente no seu traje preto de viúva à vianesa bordado a ouro, o cabelo liso de espiga dourada enrolado atrás numa farta trança em forma de caracol, o lenço branco rendado preso nas pontas a envolver o pescoço de jaspe, olhos azuis a imitar a cor do mar num dia esplendoroso de sol, rosto harmonioso de alva e um busto de rolinha farta coberto pelas voltas dos cordões de ouro que lhe caíam do pescoço.





                   Não a reconheceu, nem ela deu sinais de ter dado pela sua presença, mantendo uma postura de aparente alheamento em relação aos olhares que sobre ela convergiam das pessoas que assistiam à passagem do desfile. Foi com alguma impaciência que esperou pelo fim do cortejo e, logo que isso aconteceu, não perdeu tempo em ir ao seu encontro na esperança de poder chegar à fala com ela.

                   Rompeu por entre a multidão que se juntara ao redor do coreto onde a banda de música iria dentro de momento iniciar o seu concerto e foi encontrá-la em amena conversa com duas amigas, que ele conhecia dos tempos idos. Estava, assim, facilitada a abordagem que desejava para iniciar a conversa e obter a informação que lhe faltava.

                   Tinham, afinal, frequentado a mesma escola primária mas não ao mesmo tempo e na mesma classe. Ela, tinha entrado no ano em que ele terminara a instrução obrigatória, e, como cresceram em lugares distantes e como emigrara poucos anos depois, nunca mais voltaram a ver-se.

                   Preso aos encantos da jovem, que podia agora contemplar mais de perto, ao vê-la sorrir, ao entregar-se  à sedução do azul que irradiava do seu olhar, sentiu que entre os dois se tinha formado uma corrente de atração recíproca, uma aceitação mútua contra qual não se quer resistir  ou tentar disfarçar. Soube, a partir desse momento, que tinha encontrado o seu tesouro e estava determinado a entrar na posse dele mesmo que para isso tivesse que escalar montanhas inexpugnáveis.
 

                   Já com o arraial no fim, pediu-lhe que o deixasse acompanhá-la a casa, no que ela acedeu com um sorriso de agrado. Caminharam, a pé, lado a lado, durante o tempo necessário para chegar perto do lar onde residia a sua apaixonada, não muito afastada do recinto onde se tinham conhecido melhor. Junto ao portão de acesso à moradia, estavam em conversa com um vizinho, aqueles que, viria a saber a seguir, eram o pai e a mãe da sua tão sedutora companhia.


                                                                                         (Continua)

Remígio Costa,
2013/Fevº

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