S. João d'Arga é tudo isto, é alma do povo alto-minhoto que sobe a serra e se liberta, limpa e se renova na raiz da sua origem.
Trago para vos dar a conhecer uma poesia de António Pedro, que residiu em Moledo (Caminha), um poeta que me foi sugerido por uma nossa conterrânea a trabalhar há já algum tempo longe de Lanheses, onde ele esculpe com o realismo dum artista a manejar o cinzel no granito bruto das serras de que é parte, o carácter e a alma genuína, rude mas leal do povo do Alto-Minho.
MOSTEIRO DE SÃO JOÃO D’ARGA
antónio pedro / protopoema da serra d’arga
Sonhei
ou bem alguém me contou
Que um
dia
Em San
Lourenço da Montaria
Uma rã
pediu a Deus para ser grande como um boi
A rã
foi
Deus é
que rebentou
E
ficaram pedras e pedras nos montes à conta da fábula
Ficou
aquele ar de coisa sossegada nas ruínas sensíveis
Ficou
o desejo que se pega de deixar os dedos pelas arestas das fragas
Ficou
a respiração ligeira do alívio do peso de cima
Ficou
um admirável vazio azul para crescerem castanheiros
E
ficou a capela como um inútil côncavo de virgem
Para
dançar à roda o estrapassado e o vira
Na
volta do San João d’Arga
Não
sei se é bem assim em San Lourenço da Montaria
Sei
que isto é mesmo assim em San Lourenço da Montaria
O
resto não tem importância
O
resto é que tem importância em San Lourenço da Montaria
O
resto é a Deolinda
Dança
os amores que não teve
Tem o
fôlego do hálito alheio que lhe faltou a amolecer a carne
Seca
como a da penedia
O
resto é o verde que sangra nos beiços grossos de apetecerem ortigas
O
resto são os machos as fêmeas e a paisagem é claro
Como
não podia deixar de ser
As
raízes das árvores à procura de merda na terra ressequida
Os
bichos à procura dos bichos para fazerem mais bichos
Ou
para comerem outros bichos
Os
tira-olhos as moscas as ovelhas de não pintar
E o
milho nos intervalos
Todas
estas informações são muito mais poema do que parecem
Porque
a poesia não está naquilo que se diz
Mas
naquilo que fica depois de se dizer
Ora a
poesia da Serra d’Arga não tem nada com as palavras
Nem
com os montes nem com o lirismo fácil
De
toda a poesia que por lá há
A
poesia da Serra d’Arga está no desejo de poesia
Que
fica depois da gente lá ter ido
Ver
dançar a Deolinda
Depois
da gente lá ter caçado rãs no rio
Depois
da gente ter sacudido as varejeiras dos mendigos
Que
também foram à romaria
As
varejeiras põem as larvas nos buracos da pele dos mendigos
E da
fermentação
Nascem
odores azedos padre-nossos e membros mutilados
É
assim na Serra d’Arga
Quando
canta Deolinda
E vem
gente de longe só para a ouvir cantar
Nesses
dias
as
larvas vêem-se menos
Pois o
trabalho que têm é andar por debaixo das peles
A
prepararem-se para voar
Quanto
aos mendigos é diferente
A sua
maneira de aparecer
Uns
nascem já mendigos com aleijões e com as rezas sabidas
Do
ventre mendigo materno
Outros
é quando chupam o seio sujo das mães
Que
apanham aquela voz rouca e as feridas
Outros
então é em consequência das moscas e das chagas
Que
vão à mendicidade
Não mo
contou a Deolinda
Que só
conta de amores
E só
dança de cores
E só
fala de flores
A
Deolinda
Mas
sabe-se na serra que há uma tribo especial de mendigos
Que
para os criar bem
Lhes
põem desde pequenos os pés na lama dos pauis
Regando-os
com o esterco dos outros
Enquanto
ali estão a criar as membranas que valem a pena
Vão os
mais velhos ensinando-lhes as orações do agradecimento
Eles
aprendem
Ao
saberem tudo
Nasce
de propósito um enxame de moscas para cada um
Todas
as moscas que há no Minho
Se
geraram nos mendigos ou para eles
E é
por isso que têm as patinhas frias e peganhosas
Quando
pousam em nós
E é
por isso que aquele zumbido de vai-vem
Das
moscas da Serra d’Arga
Ainda
lembra a mastigação de lamúrias pelas alminhas do Purgatório
Em San
Lourenço da Montaria
Este
poema não tem nada que ver com os outros poemas
Nem eu
quero tirar conclusões com os poetas nos artigos de fundo
Nem eu
quero dizer que sofri muito ou gozei
Ou
simplesmente achei uma maçada
Ou sim
mas não talvez quem dera
Viva
Deus-Nosso-Senhor
Este
poema é como as moscas e a Deolinda
De San
Lourenço da Montaria
E nem
sequer lá foi escrito
Foi
escrito conscienciosamente na minha secretária
Antes
de eu o passar à máquina
Etc.
que não tenho tempo para mais explicações
É que
eu estava a falar dos mendigos e das moscas
E não
disse
Contagiado
pelo ar fino de San Lourenço da Montaria
Que
tudo é assim em todos os dias do ano
Mas
aos sábados e nos dias de romaria
Os
mendigos e as moscas deles repartem-se melhor
São
sempre mais
E
creio de propósito
Ser na
sexta-feira à noite
Que as
mendigas parem aquela quantidade de mendigozinhos
Com
que se apresentam sempre no dia da caridade
Elas
parem-nos pelo corpo todo
Pois a
carne
De tão
amolecida pelos vermes
Não
tem exigências especiais
E
porque assim acontece
Todos
os meninos nascidos deste modo têm aquele ar de coisa mole
Que
nunca foi apertada
Os
mendigos fazem parte de todas as paisagens verdadeiras
Em San
Lourenço da Montaria
Além
deles há a bosta dos bois
Os
padres
O ar
que é lindo
Os
pássaros que comem as formigas
Algumas
casas às vezes
Os
homens e as mulheres
Por
isso tudo ali parece ter sido feito de propósito
Exactamente
de propósito
Exactamente
para estar ali
E é
por isso que se tiram as fotografias
Por
isso tudo ali é naturalmente
Duma
grande crueldade natural
Os
meninos apertam os olhos das trutas
Que
vêm da água do rio
Para
elas estrebucharem com as dores e mostrarem que ainda estão vivas
Os
homens beliscam o cu das mulheres para que elas se doam
E
percebam assim que lhes agradam
Os
animais comem-se uns aos outros
As
pessoas comem muito devagar os animais e o pão
E as
árvores essas
Sorvem
monstruosamente pelas raízes tudo o que podem apanhar
Assim
acaba este poema da Serra d’Arga
Onde
ontem vi rachar uma árvore e me deu um certo gozo aquilo
Parecia
a queda dum regímen
Tudo
muito assim mesmo lá em cima
E cá
em baixo dois suados à machadada
Ao
cair o barulho parecia o duma coisa muito dolorosa
Mas no
buraco do sítio da árvore
Na
mata de pinheiral
O azul
do céu emoldurado ainda era mais bonito
Em San
Lourenço da Montaria"
Moledo,
Agosto de 1948
antónio pedro
antologia
poética
angelus
novus
1998
(Grato e HB)
(Grato e HB)
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