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ALFAIATE POR MEDIDA, ARTE EXTINTA EM LANHESES
ALFAIATE POR MEDIDA, ARTE EXTINTA EM LANHESES
Desde
o princípio dos anos quarenta que guardo memorizadas algumas recordações
referentes aos que nesse tempo faziam fatos por medida e exerciam a arte como
profissão única. O primeiro que conheci e de quem guardei imagens com nitidez
de pormenor, é o meu pai, Artur, de seu nome.
Na sala grande da casa de habitação do piso superior, uma mesa larga de linhas retangulares permitia ainda assim fácil circulação à sua volta. Brincava ao redor dela lançando no ar aviões de papel que o meu pai fazia para me entreter sem o perturbar enquanto trabalhava. Em cima, três metros de fazenda bem estendida, moldes, giz branco e fino de formato redondo, fita métrica pendurada à volta do pescoço e uma tesoura enorme manejada com mão firme a recortar sem desvio de milímetro pelas linhas traçadas. Preparam-se as entretelas, forros e chumaços para equilibrar o casaco nos ombros. Juntas as peças no formato da roupa a executar, seguras por pontos largos feitos à agulha com linha branca, era dada a primeira prova antes de passar à Singer junto à janela. A seguir, trrrr, trrrr, trrr, tangida pelo pedal iam ficando ligados pela agulha frenética da máquina, peça por peça, os recortes da fazenda dando forma à obra final, e pode o cliente a seguir fazer a segunda prova. Veste, ajusta, corrige e remarca com o giz, descose se for necessário, segura com dois alfinetes, e está concluído o trabalho para os acabamentos de pormenor: bainhas cerzidas com a agulha e dedal no dedo, abertura das casas e fixação de botões. A tarefa cabia ao ajudante aprendiz, João Franco, que viria a entrar para a família pelo casamento com a irmã da minha mãe, de nome Olívia. Mais tarde, porque o meu pai encetou um rumo diferente à vida e deixou definitivamente a profissão, foi o tio João que assumiu a alfaiataria com porta aberta para a estrada em macadame, no rés-do-chão.
Na sala grande da casa de habitação do piso superior, uma mesa larga de linhas retangulares permitia ainda assim fácil circulação à sua volta. Brincava ao redor dela lançando no ar aviões de papel que o meu pai fazia para me entreter sem o perturbar enquanto trabalhava. Em cima, três metros de fazenda bem estendida, moldes, giz branco e fino de formato redondo, fita métrica pendurada à volta do pescoço e uma tesoura enorme manejada com mão firme a recortar sem desvio de milímetro pelas linhas traçadas. Preparam-se as entretelas, forros e chumaços para equilibrar o casaco nos ombros. Juntas as peças no formato da roupa a executar, seguras por pontos largos feitos à agulha com linha branca, era dada a primeira prova antes de passar à Singer junto à janela. A seguir, trrrr, trrrr, trrr, tangida pelo pedal iam ficando ligados pela agulha frenética da máquina, peça por peça, os recortes da fazenda dando forma à obra final, e pode o cliente a seguir fazer a segunda prova. Veste, ajusta, corrige e remarca com o giz, descose se for necessário, segura com dois alfinetes, e está concluído o trabalho para os acabamentos de pormenor: bainhas cerzidas com a agulha e dedal no dedo, abertura das casas e fixação de botões. A tarefa cabia ao ajudante aprendiz, João Franco, que viria a entrar para a família pelo casamento com a irmã da minha mãe, de nome Olívia. Mais tarde, porque o meu pai encetou um rumo diferente à vida e deixou definitivamente a profissão, foi o tio João que assumiu a alfaiataria com porta aberta para a estrada em macadame, no rés-do-chão.
Nunca soube, ou apagou-se no escaninho
das memórias adormecidas se alguma vez o ouvi contar a alguém, como optou e com
quem aprendeu o meu progenitor a profissão de alfaiate. Dos meus avós não terá
sido porque o avô materno não tinha esse ofício e faleceu novo em Espanha para
onde emigrara em acidente de trabalho que desconheço qual fosse, e desde que
tomei consciência de quem era e o que fazia, o paterno explorava uma loja de mercearia
na casa onde residia. (1)
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Antes de ter emigrado para o Brasil,
ainda jovem e no estado de solteiro, o meu pai e o irmão mais velho, Moisés,
como ele alfaiate, abriram em sociedade no Largo da Feira, atual Largo Capitão
Gaspar de Castro, uma alfaiataria. Não deu certo porque à época eram escassos
os clientes com posses em moeda para vestirem fatos por medida, e já bem
especializados no jogo das damas com que iludiam o tédio das horas sem trabalho,
decidiram tentar no Rio de Janeiro a compensação da arte que exerciam, com fama
de artistas de gabarito a fazer fé nos testemunhos dos seus contemporâneos de
que mais tarde viria a ter conhecimento. Regressaram alguns anos depois, não
sei quantos, e com o casamento projetado e consumado sem muita delonga,
nasceram as minhas duas primeiras irmãs e, comigo na lista de espera na
terceira posição, voltou o meu pai com o irmão, pela segunda vez, a atravessar
em trinta dias o Atlântico para chegar à terra de Santa Cruz. Contudo, as
saudades apertaram a estadia e o adeus ao Rio, ao Corcovado no Pão de Açúcar e
a Copacabana, tornar-se-ia definitivo.
Ao tempo a que reporto a nomeação dos primeiros
alfaiates que conheci trabalhava no ofício Joaquim Vacondeus Palma Marinho, ou Joaquim Curjães no tratamento comum, com
oficina no Lugar do Outeiro; mais tarde, passou a residir com a família e a
trabalhar no Lugar da Corredoura, na casa onde mora atualmente o filho único, José Amado Palma Marinho, o Zé Amado,
o qual, tendo o pai falecido e usando de alguma prática adquirida na
colaboração dada ao seu progenitor, foi assegurando após o falecimento do pai por
mais algum tempo a manutenção da modesta oficina aceitando esporádicos serviços
de arranjos de vestuário, o que presentemente, ao que presumo, já não faz.
No Lugar do Barreiro trabalhou durante
alguns anos, por conta própria, José Costa Vítor (*), desconhecendo eu com quem e onde
aprendeu o ofício, e apenas o mais velho dos seus vários descendentes, o
Eugénio, o ajudava e seguiu algum tempo com ele a aprendizagem, não tendo porém
prosseguido o mester por ter enveredado pela ação política onde atualmente ainda
milita.
Nascidos em Lanheses e que se fizeram
alfaiates e exerceram atividade profissional de relevo noutros ambientes,
nomeio três: Joaquim Rebouço ou Joaquim
Paulinho, Joaquim Palma Nunes Franco e Adriano Palma Fernandes. O primeiro,
já falecido há algum tempo, fixou-se em Almada e fundou alfaiataria com vasta clientela
entre destacadas personalidades da vida social e político da grande Lisboa,
asseverado pelo amigo Joaquim Nunes Franco, que com ele conviveu durante os
anos de permanência na capital. O Joaquim, enquanto profissional de alfaiataria
e encarregado geral em atelier de
confeção de roupas por medida, frequentou cursos especializados de estilismo antes
de emigrar para os Estados Unidos onde permaneceu largo período da vida,
regressando há já alguns anos à terra natal fixando residência em Viana do
Castelo na situação de reformado. O Adriano Palma, que os amigos tratavam por Diamantino Viseu por ser grande apreciador
das touradas e admirador do famoso toureiro, foi também ele emigrante-alfaiate
nos Estados Unidos, faleceu em janeiro de 2014 sem ter feito carreira em
Lanheses.
Agitando num sopro mais forçado as cinzas
demoradas que me restam da evocação dos tempos idos nesta matéria, uma ténue brasa
traz-me à relação dos nomeados o nome de António Silva, conhecido por António da Palmira, o qual teria tido a
profissão de alfaiate antes de fixar residência nesta freguesia no Lugar do
Outeiro, porque o que melhor recordo é a casa de petiscos e comidas que possuiu
e explorava no Largo da Feira onde hoje está a Ourivesaria de Lanheses. Já depois
de ter alinhavado este texto apurei que, antes de enveredar pelo ramo do
comércio, o António Silva exerceu, efetivamente, na sua residência a profissão
de alfaiate por conta própria durante alguns anos.
Através do José Amado Palma Marinho, soube
ainda que Adriano Franco Fernandes, igualmente desta freguesia, foi aprendiz da
arte na alfaiataria de Joaquim Curjães, tendo ido seguidamente para Lisboa onde
trabalhou alguns anos chegando a contramestre, acabado mais tarde por emigrar
para o Brasil onde viria a falecer. Apurei mais que, Manuel Rocha, antes de
fixar residência em Lisboa onde trabalhou e se notabilizou como ciclista do
Sporting Clube de Portugal, ao serviço de quem obteve o sexto lugar numa Volta
a Portugtal em que a sua equipa saiu vencedora, trabalhou durante alguns anos
na profissão antes de optar por outros rumos.
Os alfaiatas tinham que concorrer já nesse
tempo com a roupa de “pronto a vestir”
vendida na feira quinzenal de Lanheses, que então decorria no Largo principal
da freguesia, com a famosa casa “Cardoso
da Saudade”, com sede em Braga. Os fatos estavam exposto num trailer amovível de grande dimensão onde
era possível aos clientes escolher numa gama atraente e variada à medida,
ajustada com preços muito rateados. A mudança de hábitos no vestir, a inovação
no estilo, o desenvolvimento da indústria, o markting, a importação e a oferta intensa resultante da
proliferação dos grandes armazéns que esmagaram os preços e a adesão em massa
dos clientes beneficiando da melhoria substancial do poder de compra e da
acessibilidade fácil, foram decisivos para a quase extinção dos alfaiates
tradicionais, dando lugar ao aparecimento dos ateliers estilizados e a costureiros altamente credenciados no design e na originalidade da oferta.
(*)
Terá sido o seu pai, Mariano, que lhe ensinou o ofício de acordo com esclarecimento
recebido de um seu descendente.
(
((1) Tendo tomado conhecimento deste assunto, o meu primo Euclides Fernandes
informou-me de ter ouvido a sua mãe e minha tia Lucinda Costa Lima, irmã mais
nova do meu pai, dizer que o nosso avô Manuel Rodrigues da Costa, o “pai velho”
como o tratávamos, exerceu a arte de alfaiate e foi ele quem a ensinou aos
filhos, Artur e Moisés. Estiveram os três no Brasil e não apenas os dois filhos
como escrevi na peça. Mais tarde e depois de deixar de exercer a profissão o
meu avô abriu a mercearia na casa que ainda existe junto ao adro da igreja
paroquial da freguesia, que manteve até perto do fim da vida.
Remígio
Costa, 2017/fevereiro.
Fotos: em cima; à direita: Joaquim Nunes e esposa. Em baixo: José Amado.
Excelente discrição do trabalho de aifaiate...excelente reportagem. Parabéns Sr Remigio.
ResponderEliminardescrição queria escrever
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