ALTO LÁ E PÁRA O BAILE!
No tempo em que o teatro amador constituía a mais apreciada actividade cultural e recreativa da povoação onde os factos aconteceram, o comandante da força do posto da guarda irrompeu a custo pelo estreito corredor central das cadeiras apinhadas de gente que assistia no salão da Casa do Povo à estreia da peça “Os Condes de Alcoutim”, da autoria do padre jesuíta Luiz Gonzaga Cabral, uma dramalhão histórico que decorre num cenário de Idade Média onde não faltam traições ao Rei legítimo ausente do trono em cruzadas longínquas , heróis e vilões e amores impossíveis, intrigas e lutas sem fim, que ali estava a ser representado pelo Grupo Cénico amador da localidade. Chegando perto do palco, dando um jeito à espingarda Mauser do espólio da I Grande Guerra que transportava ao ombro em bandoleira , dirigindo-se aos actores naquele momento em cena ordenou, numa voz de falsete e pose de autoritarismo presunçoso de quem está habituado a ser obedecido sem contestação
- Alto lá e
pára o baile!
A ordem, por inopinada e vinda de uma autoridade cujas
prática quotidiana no exercício das suas funções lhe granjeara fama de
excessivo zelo e tomada de decisões muito acima das competências que a lei lhe
atribuía, causou impacto imediato nos intérpretes que estavam no palco, os
quais, interromperam os diálogos ante o desespero do ponto que, sem se ter
apercebido do que se passava atrás dele, encolhido que se encontrava na
reduzida caixa aberta ao nível do soalho repetia e gesticulava, aflito, as
"deixas" na tentativa de retomar o curso normal do espectáculo.
- Alto lá e pára o baile!
A reacção que se seguiu foi tudo o que o cabo graduado em comandante não contava. Do palco,
alguém afrontava o intruso , ripostando:
- Baile?
Que baile? O senhor chama a isto baile?
Era o pajem da peça, uma figura ainda jovem mas já de
razoável estatura com vestimenta “à
Robin dos Bosques”, de arco e flechas de madeira artesanais enfiadas na aljava
que transportava presa às costas, quem tomava a iniciativa em afrontar e
contestar a abrupta e despropositada interrupção do concorrido acontecimento.
- Então,
um baile?, prosseguiu. Com que
autoridade intervém o senhor aqui, neste espaço?. Virando-se, logo a seguir,
para o presidente da Instituição onde decorria
o espectáculo, ali presente na primeira fila, ele também ainda mal
refeito da inusitada e surpreendente atitude da autoridade.
- Senhor
presidente, interpelou-o “Robin dos
Bosques”, quem manda aqui dentro?
É este senhor?
Na salão
começaram a ouvir-se ruídos ameaçadores e uma voz ergueu-se acima de confusão
que começava a instalar-se, num grito de velada ameaça:
-Apaguem a
luz!
Logo, mais
vozes se juntaram à anterior e era já um ribombar de trovoada depois do
relâmpago que anunciava a borrasca latente e incontrolável.
Apercebendo-se da insistente degradação do ambiente o invasor recuou na
intenção e na estratégia que o movera,
e, a custo, com a canhota levantada à
altura dos ombros segura nos dois
braços, conseguiu abrir caminho até à
saída agrupando a força de vários praças que para ali destacara. Havia-se
formado, no exterior, uma pequena multidão que não tinha conseguido obter
bilhetes de ingresso, mesmo recorrendo ao mercado negro que se verificava
muitas vezes sempre que o grupo cénico amador ali estreava um espectáculo, e, o
estado geral de ânimo não era o mais propício ao apaziguamento em caso de
qualquer incidente; considerando a insuficiência de efectivos no caso de
deterioração da ordem pública, foram os
militares posicionar-se estrategicamente
a alguns metros de distância sem, contudo, dar mostras de querer abandonar o local.
Para melhor
compreensão dos factos é necessário referir que o objecto da intervenção da
força policial era o de fiscalizar se na sala
estavam crianças mesmo que
acompanhadas dos seus pais ou familiares. Executor implacável da letra da lei
até ao ponto de aplicar uma multa a uma familiar muito próxima a quem surpreendera em flagrante a sacudir o tapete da janela do posto da
guarda para a rua, era imperioso mostrar a sua inabalável
exemplaridade profissional fossem quais fossem as situações e o momento de o
fazer. Abril era ainda sonho guardado e
abafado pelo medo nesse tempo e os tiranetes com poder mesmo que de relativa
dimensão afadigavam-se em mostrar
serviço, exorbitando com empenho canino
nas acções que desenvolviam visando
incutir nos mais humildes uma obediência cega e incondicional .
Escolheu mal o momento, como veio a verificar-se.
O espectáculo
havia de chegar ao fim já bastante tempo
depois da meia-noite e, como habitualmente, os intérpretes amadores do
grupo de teatro que o levara à cena comentavam na forma habitual as peripécias
que o envolveram, comendo bolachas Maria e bebendo um dedal de vinho do Porto,
como era tradição. Chegou,
entretanto, ao conhecimento do “Robin dos
Bosques” que a força da ordem continuava perto da entrada principal com o
intuito de o conduzir ao posto próximo, dentro dos melhores procedimentos
vigentes à altura dos acontecimentos, onde, como constava e era garantido
acontecer, quem lá entrasse, homem ou mulher, novo ou idoso, era interrogado
durante horas, ameaçado, agredido quando calhava, sujeito a julgamento e
veredicto condenatório que forçava o(a) infeliz a passar umas horas, com menos
sorte até uma noite, atrás das grades da porta da enxovia onde nem janela
existia para poder ver o “sol aos quadradinhos”.
Ainda desta vez o esbirro viu gorada a sua ânsia persecutória
de vingança contra o afrontador da sua intocável autoridade. Com o auxílio dos
colegas que foram saindo naturalmente pela porta principal, o improvisado Robin Wood, interpretando à letra as aventuras que o salvaram sempre das mãos
do vilão, já sem o disfarce da vestimenta que usara no cena, saiu à socapa pela porta dos fundos e
escapuliu-se dali nas barbas da patrulha para ir gozar na sua cama o descanso
retemperador das emoções vividas nessa noite.
No tempo em que ainda por cá andou até atingir o limite de
idade imposto pelo regulamento, nunca mais voltaram a estar frente a frente os
dois principais protagonistas do episódio aqui descrito.
É de acreditar que nem um nem outro alguma vez se tivesse
lamentado por isso não se ter verificado.
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