A ex-Escola Primária de Lanheses
Não sei a origem nem a razão pela qual lhe deram a alcunha de "chasco", mas era assim conhecido e tratado em surdina fora da escola o meu primeiro professor primário, de nome José Esteves, da Escola Primária de Lanheses, corria o ano de 1943 e a II Grande Guerra Mundial. Contudo, passados que estão oitenta anos sobre o início das aulas do ano escolar em que com ele necessariamente convivi, retenho na minha memória pormenores indeléveis da sua ação docente e da figura sombria e austera que emergia da secretária colocada no estrado, em plano superior à esquerda do quadro preto na sala norte do rés do chão. O professor Esteves era magro e alto, com cabelo liso e tez escura numa cara magra e oblíqua, sempre o vi com o mesmo fato e chapéu pretos, macambúzio e só.
Nunca lhe conheci um sorriso nem a boca sem um cigarro aceso mas sempre tinha à mão na secretária uma cana de mais de um metro de comprimento e no canto direito a "menina" redondinha de cinco buracos, a sua ajudante predileta que mais tarde eu havia de sentir por mais que uma vez.
Assim, começava a aula:
-Preparem-se para o desenho, soltava a ordem o mestre Esteves numa voz ríspida e fria seguida do estrondo da cana a bater na tampa da secretária para dar início à aula. Então, de mim, na sala só ficava a parte do pescoço para baixo!
Três períodos decorridos e o meu aproveitamento não colheu, pelo modo aterrorizador como me era transmitido o tema que me condicionava a explanação das respostas, a cujo silêncio ou erro correspondia o uso da cana nas orelhas ou cinco puxadas batidas na palma da mão esquerda (escrevo com a direita) que depois arrefecia na lousa debaixo da tampa da carteira. E,quanto mais castigo, menos discernimento e consequentemente, parcos conhecimento. O resultado só poderia dar negativo, pelo que:
-ver-nos-emos de novo para o ano ou nunca mais, senhor professor Esteves!
E não nos vimos para meu bem e alívio. Por sorte minha, o docente Esteves, o chasco", faleceu vítima de tuberculose, ao que constou. No ano seguinte, a vaga aberta foi preenchida por um professor novo em idade, aura simpática e ativo com o nome de Ferreira (Ferreirinha), de quem guardo admiração e gratidão; além de aulas dinâmicas e inovadoras, dava à turma, aos sábados de manhã fora da sala de aula, Canto Coral e atividades lúdicas. Caiu logo no goto de todos e a mim particularmente. Com ele cantei pela primeira vez o Hino Nacional, e, muito mais do que isso, devo-lhe provavelmente o não ser hoje analfabeto. No entanto, rezo pelos dois: há muito perdoei ao senhor Esteves tudo o que dele não soube colher e louvo a Deus a sorte de encetar o caminho certo da vida que o senhor Ferreira tão bem me revelou. Que ambos estejam no melhor lugar.
Foi com alguma pena mas expectante que no início do terceiro período me transferiram para a sala ao lado (sul) onde o professor Gabriel Gonçalves, nessa altura já o diretor da Escola, lecionava a segunda e a quarta classes, recuperando assim o ano que tinha ficado para trás. Prossegui e completei a escolaridade obrigatória com a competente e incansável professora D. Deolinda Vale, a quem devo o êxito obtido nos dois últimos anos de escolaridade, cujo exame de admissão ao liceu para o qual me preparou conclui com a atribuição da classificação de "Distinto". Eternamente reconhecido, Professora.
Frequentemente, ao longo do tempo, me interroguei sobre o que teria sido a minha vida se não tivesse aprendido a ler e a escrever. Nunca esqueci e sempre lembrarei a influência decisiva que o Professor Ferreira teve na minha recolocação nos carris da viagem donde descarrilara nos primórdios da infância e bem assim da sorte de o ter como mestre dos ensinamentos essenciais do conhecimento.
A minha gratidão ad eternum Professor Ferreirinha!
RC
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